Dar-se
conta do amor que a gente tem dentro do peito é assim como ver o mar pela
primeira vez e perceber sua imensidão. Primeiro a gente pensa que parece
impossível que aquilo tudo não derrame pelas bordas do mundo, não invada o urbano
e a natureza do outro que está próximo.
A
gente olha o vai e vem das marolas na areia que brilha a cada vez que o mar se
retrai. Ele, que a hidrata e penetra. Ela, que o acolhe sem resistência. Ambos se
tocam numa alternância de movimentos que pareceriam opostos, se não soubéssemos
que são complementares. Como afago, carinho que faz à amante, o mar se estende
grandioso e soberano sobre ela, sobre aquela que lhe dá suporte. Fica claro,
neste momento, que ele é feito para banhar, alimentar, maravilhar aquele que
descobre sua existência. O que vemos é o depois, depois deste ato de amor, depois
que o amor toca a alma e a toma para si. É quando os dois ficam ali deitados
apenas respirando, embora grande parte de si mesmos, ao mesmo tempo esteja
fertilizando a vida, cada um em seu próprio elemento. Vemos o momento da
intersecção dos dois elementos, onde seus limites se permitem penetrar, quando o
amor e a alma a que pertence interagem e ambos se fazem um. Contudo, ele não a
fertiliza diretamente, mas prepara o ambiente da amante para aquele que virá,
um pescador, um habitante da aldeia ou talvez, da cidade.
Algumas
vezes, este interlúdio, encontro do amor com nossa alma não é tão manso nem o
ritmo é um “pianíssimo”. Quando as pedras estão em seu caminho e a paisagem se
modifica, podemos ter uma visão diferente do amor que nos fertilizou. O mar
batendo bravo contra a alma que está ali endurecida e não quer ceder, é uma das
possibilidades. E a isto podem somar outros elementos da paisagem e da
natureza, os ventos, tempestades e furacões. Então, o mar invade, num movimento
de força indomável e incontida, muitas vezes furiosa, como reagindo a alguém que
tivesse ousado pretender represá-lo ou mantê-lo em filtro de barro, com uma
torneirinha para ser aberta só quando dele quisesse beber. Mar de verdade, não
aquele das pinturas e aquarelas, vai buscando aquilo que era seu, o espaço que
deveria lhe pertencer se não houvessem antes o invadido na maré vaza, ou negado
sua existência só por não conhecê-lo. E, em algumas praias, temos visto que ele
vem, cobre, engole, destrói até!
Ah!
não é porque somos do interior, que podemos negar o que ele é. Um dia, mais
cedo ou mais tarde a gente descobre que está mais perto do que supúnhamos. Ele
está ali, dentro do peito, vivo, com capacidade para inundar de amor, perdão e
afago, ou destruir. Ele é água, sentimento, emoção e procurará sempre o espaço
que é seu. Não é possível represar a força de vida do mar, sua necessidade
imperiosa de ser, sua pulsação natural. No entanto, podemos tentar conhecer
aquilo que trazemos no peito. Eu, por mim, procuro manter-me numa praia mansa,
onde haja espaço para deixar que se espalhe, pois um dia tentei contê-lo, e
aprendi que isto não é viável.
Independente
de eu ter escolhido amar o mesmo pescador, entre tantos, pela eternidade,
a
paisagem neste tempo nunca seria a mesma e as marés se revezaram. Eu sei, assim
é a vida para quem vive com o mar a seus pés ou dentro do peito. Um dia apanho
conchas, deito na areia fresca e banho meu corpo, sentindo o sol brilhar em minha pele. Em
outra manhã, logo após a maré cheia e a tempestade, verei destroços, galhos e
algum lixo. O pescador pode ter se ausentado em viagens a procura de conhecer
mares distantes, ou mesmo entrado mar adentro de seu peito até descobrir quem,
afinal, habitava suas praias.
Mansa era minha forma de amar
e embora tenha escolhido uma praia tranqüila para viver junto ao mar, um
habitante de Nova York, náufrago de tempestade, trazido por inesperada corrente
marinha, poderia aparecer de repente na praia idílica e quase deserta onde eu estava.
E talvez se demorasse a descansar e observar as conchas, e a respirar a brisa
do mar que conheço. O mar que, por seguir pulsando dentro do peito, iria fatal
e naturalmente de encontro aquele que ao se aproximar demais, mostrou que trazia
nos olhos o mesmo brilho da areia e de estrelas marinhas.
Água
do mar é viva. Não morre como estátua no cimento, não pode ser mal contida. Seu
destino é fluir, banhar, encontrar-se com o limite que a receba. O amor dentro
do peito, não pode ser represado. Mar também não. É desperdício não crer em sua
capacidade de fertilizar a vida. Tolice imaginar que ao se recolher na maré baixa
ele ficasse por lá, para sempre quieto, e não retornasse trazendo tesouros ou
escombros de suas profundezas. Ele não obedece à nossa vontade, mas ao que está
acima de nós, e pertence à nossa natureza.
Minha
natureza é a daqueles que conhecem o mar, mergulharam nele de corpo inteiro e andaram
anos com os pés tocando suas águas rasas e a areia, exatamente naquele ponto em
que o amor e a alma se encontram, numa paisagem que se mostra diferente a cada dia,
a cada fase da lua.
Portanto,
procurar a praia onde possa de novo deitar com o amado e amar mansamente é instintivo,
é o único modo de conter o mar, é reencontrar a paz e sentir, como no respirar
dos amantes, o pulsar harmonioso da vida que se completa no movimento daquilo que, neste ato, encontra sentido.
Texto: Vera Alvarenga
Foto: Priscila Pereira