Caminhava, distraída, com um pensamento que lhe
marcava com mais rugas, o rosto. Havia falado disto, um dia antes, com uma
amiga a quem confessara sua covardia.
- Por que este medo? Sentir medo era algo bom, assim considerava,
pois com ele sabia seus limites. Mas, e este medo de não sei quê ?! Esta
insegurança que vinha sorrateira apertando no peito o coração, espremido,
confuso...
- Por que, se tudo parece finalmente entrar nos eixos? Impossível
lidar com um medo que vinha, não como aliado, mas como inimigo camuflado.
Tentara fazer de conta que não existia. Ignorá-lo,
durante o dia era fácil, mas à noite, logo após deitar-se, quando vinha das
entranhas e subia pela coluna, com um arrepio nas costas, era outra história. Como
encarar de frente o medo, se ele não tinha cara?
O amor é verbo, o melhor do amor é amar, pensava,
enquanto lembrava que eles tinham tido uma longa história de amor. Não ela e o
medo. Ela e o homem, cuja mão puxava e colocava no peito, cujo corpo usava de
escudo para proteger-se daquele frio. Talvez fosse o inverno a gelar os
lençóis... não, não era. Era um medo, nem sabia de que, que só passava com o
calor dele e a mão a apertar-lhe levemente o seio como a dizer-lhe :
- Pronto, estamos juntos. Ao que seu coração
respondia - Agora, estamos bem.
O medo assim, sem nome ou personalidade, nem
razão aparente, não tinha nem mesmo caráter embora caracterizado. Despia-se de
importância. Pareceria tolo como o ator principal que entrasse em cenário
desconhecido, num palco pouco iluminado e quisesse interpretar seu papel para
um público inexistente. Entretanto havia um público - e era ela! Ela estava
ali,assistia o drama, e era também o cenário e o palco, e o próprio ator
com seu tema, e as emoções que rolavam no ato. Não, não era uma tolice! Era
forte e vivo este personagem sem rosto.
Seus pensamentos quebraram-se com o susto - o som
alto da sirene de uma ambulância que vinha de trás de si, na rua.
- Pobre de quem está ali, pensou. Este sim, com
sua vida ameaçada, tem motivos para estar com medo. Não eu, que apenas descubro
minha covardia....
E a ambulância parecia voar, perto, bem
perto... E então ela percebeu, claramente. Um choque. Foi a ambulância que
bateu em seu corpo ou a verdade que esbofeteou-a na cara, ofendida com sua
insensibilidade? Logo ela, tão sensível e vulnerável ao sofrimento alheio que
precisava usar uma couraça, por vezes, para proteger-se. Ela, cujo corpo sentia
tão facilmente a dor que, há tempos, insensibilizou-se.
- Insensível! ouviu o grito de dentro de si
mesma.
E então, ela recordou e sentiu o mesmo que antes.
Sentiu a vida esvaindo-se de si mesma. A alegria, a ternura, tudo indo embora.
De tudo que vivera, de tudo o que era, nada restaria diante da ameaça sofrida.
Apenas, por momentos, a dor e a angústia do morrer. Corpo e alma debatendo-se
pela sobrevivência. Como aquele que se afoga no oceano, não ela mas o verbo em
si , estendeu as mãos, no último esforço, e agarrou-se ao apoio que o manteria
à flor da água, até que pudesse respirar e recobrar forças.
- Mulher ao mar! Gritou o verbo, na intenção de
salvar a mulher. Nenhum barco ou salva-vidas, ninguém nem ao menos para
compreender porque se debatia. À distância, e para poucos olhares, ela parecia
apenas divertir-se na água rasa. Não era possível para eles compreenderem que
ela lutava pela vida.
Ah, o amor... Amor não é apenas
sentir, é amar. Foi deste mesmo modo, que sua alma lutou quando sentiu que o
amor de dentro de si, ameaçado, morria. Morriam os dois, ela e o verbo. E quem,
diante da dor e da ameaça de morte não sentiria medo? Quem?
E quem era o algoz? Era ela, a insensível!
A que não queria mais amar, sem saber que isto a mataria também. E o medo tinha
de esconder-se de tão lógica criatura. E escondeu-se, bem nas entranhas...
...Foi quando viu o pássaro ferido a
afogar-se naquele oceano de perda, dolorido como ela. E desejou salvá-lo.
Descobriram que ainda tinham asas. Ela, vestida com toda a coragem do mundo,
voou. E voaram até a praia e com simples gestos, salvaram um ao outro.
Já não sentia tanta dor. Estava
apaixonada por um pássaro, ou era o efeito de uma droga alucinógena que
lhe tirava o sofrimento? Não importava, era bom. O amor era verbo e ela
percebeu que ainda podia voltar a amar.... Mas isto foi há tanto tempo...onde
estava o pássaro? onde estava ela,
agora?
Aquele medo, o pavor, o susto por
ter a própria vida ameaçada, foram absorvidos pelo corpo, e ficaram lá,
escondidos. O melhor do amor...é amar. E sua vida, que não fora em nada
importante a não ser por poder amar, fora ameaçada de morte. Sua alma assim o
fora. Por isto havia o medo, que escondido tinha perdido a forma, a cara, a
razão, mesmo depois que ela acordou na praia. Ou será que foi no hospital, ou
na calçada depois do susto? Não importava. Alguém, junto a si, lhe estendia a
mão. E abraçou-a. Por algum motivo tivera medo de perdê-la. No início, ela não
o reconheceu, embora o conhecesse há tanto tempo...durante o dia, alerta,
olhava-o desconfiada... quem seria aquele? Seria confiável? À noite, quando
tudo era paz, entregava-se ao destino que era dela e deixava-se aquecer por
aquele sentimento.
... Ela entendia. Se ninguém mais a
compreendesse, não faria diferença. Hoje, ela conhecera a cara do medo. Sabia
porque ele tinha se escondido em suas costas. Após olharem-se um nos olhos do
outro, andavam agora,lado a lado. Com sorte, a confiança sopraria uma brisa
morna e ela não sentiria mais frio, se o tempo do verbo se mostrasse presente.
Breve, talvez não sentisse mais medo. Aliás, nem fora ela que o sentira, pois
que já havia desistido. Foram o amor e a alma, os que viviam dentro dela. Foi o
verbo, que não quis morrer!
Ela, por
seu lado, não se julgava mais covarde. E ainda lhe restaria conjugar o verbo em
todos os outros tempos...
Texto e foto: Vera Alvarenga