No dia seguinte, logo pela manhã, eu iria viajar, para outra cidade. Procurar uma nova casa para morar.
Mas não iria sozinha, porque o companheiro de uma vida compreendeu que havia ali algo delicado, que poderia se quebrar em mil pedacinhos. Havia ainda um elo, delicadamente ainda ligado a algo que, até então fora precioso demais, para se deixar descuidadamente em qualquer lugar, de qualquer maneira... E este homem foi generoso. Combinou me acompanhar, como se quisesse me entregar ilesa ao meu destino, até por saber que estava quebrada por dentro.
Cinco horas de viagem em direção a uma mudança, uma nova vida, um refazer o que antes fora um ninho e agora seria apenas uma casa, reconstruir auto-estima, construir novos hábitos, transformar-se, catar os cacos e esculpir uma nova pessoa. Era ela, a Fenix novamente em minha vida!
Ela não me perguntou se eu estava preparada, se tinha forças, se tinha certeza, mas se fez presente, chegou decidida porque não sabe viver no anonimato ou na mentira. E ela veio com toda a força de um tornado, um redemoinho, virando tudo, num segundo, de pernas para o ar.
Era a minha "Fenix" e desta vez, não em forma de escultura premiada... aliás, não havia premiados, apenas um vazio no estômago, uma tristeza que de tão grande era incerta e parecia quase inexistente... como quando estamos diante da morte! Alguém sabe como é? Sem mais raiva, sem vontade de brigar por algo, sem desejo de segurar, sem mais forças , sem reação, sem mais nada a não ser o vazio, a sensação de cansaço do quando "tudo já foi feito". Agora restava, nem mesmo o medo, apenas a impotência, a entrega ao desconhecido, o deixar-se levar...
Caminhei pela casa, que fora um lar, e olhei ao redor. Os sentimentos já estavam amortecidos, após duas semanas no centro do furacão! Foi no carnaval e agora, as máscaras estavam caídas no chão. Os olhos percorriam os grandes espaços, os móveis, os mosaicos, os quadros, as esculturas, as coisas... tantas coisas de uma casa tão grande. "Ah, aquela mesa, preciso levar, nós a fizemos, e meu mosaico é tão lindo! nunca mais faria outro igual! Mas são duas! E os espelhos? As esculturas, algumas premiadas". Nada tinha importância. - "São apenas coisas... lindas, mas apenas coisas".
Então percebi que estava nua! sim, era assim que me sentia e podia sair dali, desta forma mesmo, sem levar nada. Como se fosse possível! Não! Acorda menina, acorda mulher, acorda minha senhora ! Era preciso levar o necessário.
Agora sim. Começava a fazer sentido! O necessário para que? E veio a resposta! O necessário para rodear-se do que é bonito, do que pode fazer qualquer lugar, mesmo uma caixa de fósforos, se transformar num ninho, doce, agradável, com boas energias. Era disto que eu precisava, um pouco de mim, um pouco daquelas coisas que eu fizera para que todos se sentissem bem na casa que já fora de tantos. E por que não levar algo assim comigo?
Como costume, então.. eu ainda estava viva!! Era o que sempre foi mais forte em mim... a vontade de transformar o feio, o sem nexo, sem sentido, em algo bom, bonito, atraente. Era mais uma vez o escolher - o que fazer e como reagir ao que a vida apresenta. Pensei que, desta feita, iria afundar de vez numa areia movediça, branquinha, sem nada, sem história, sem futuro, sem projetos como um papel em branco, sem ninguém a me dar a mão... era o que mais me assustava - eu não saia dali para seguir para algo melhor, nem para recomeçar uma nova vida com alguém disposto ao compromisso partilhado, como eu tinha timidamente sonhado, nem para receber das mãos do próprio Deus o presente de uma nova oportunidade...eu ia sozinha me deixando afundar, sem reação... Sem reação?
- Não, claro que não! Eu tinha comigo a certeza de que fora movida por algo belo, pelo desejo de estar inteira ao lado de um homem que é para ser um companheiro, nunca um objeto ao qual apenas nos acostumamos. Fui movida pela lealdade a princípios, por amor ao próprio amor. Minha alma não resistiu a vê-lo morrer, assim, afundando na areia até desaparecer de vez. Sim, não era eu, mas o amor, a capacidade de amar, que agonizavam em mim. Eu não tinha conseguido assistir a isto, sem que reagisse de algum modo, ao chamado da vida que ainda pulsa.
Então, não poderia haver culpa, apenas o vazio, mas jamais a culpa. Eu ainda era honesta e fiel a mais importante das minhas convicções : "Sem amor, nada vale a pena!"
Eu não sabia onde iria encontrar amor novamente e, pensava mesmo, com enorme tristeza, que jamais o encontraria... e eu estava indo na direção da única coisa que me fazia tremer na vida - a solidão! Também a morte me assusta! Mas era preferível isto, do que viver sem a luz do sol, vendo que ele, o amor, morria lentamente, sem reagir. Talvez eu precisasse mudar, aprender a amar de maneiras diferentes agora, amando muitas pessoas e coisas, ao invés de um só... Nem eu, nem ele soubemos lidar com um amor tão altruísta mas intenso, logo tornou-se algo difícil de conter, porque fez suas cobranças.
E o telefone tocou. Era o filho mais velho, que inspirado, falou das coisas que eu acabara de perceber... falou de minha capacidade para amar...e da necessidade de mudança em mim! Eu precisava mudar, ou dificilmente um homem me respeitaria, até pela natureza das coisas da vida e da sociedade! Meu filho dizia reconhecer que não era o ideal, mas era a realidade. Eu precisava me tornar mais forte, mais segura individualmente, menos permissiva, mais auto afirmativa. Como explicar-lhe que a isto se chega após treino, experimentação, liberdade para agir, errar e acertar? Mesmo assim, recebi o presente do amor dele por mim. E compreendi - a Fenix era minha. Eu a esculpi e ela era minha! Não importava quem estivesse ao meu lado, eu não poderia mais continuar a ser dependente do outro para estar viva! Meu filho me queria mais feliz, ou menos triste. Ele desejava de coração que eu aprendesse a também ir buscar o que me fazia feliz. E será que eu saberia naquele instante e depois de tanto tempo responder o que me fazia feliz que não dependesse de um homem a quem eu tivesse escolhido amar? Eu precisava pegar o destino em minhas mãos, era o que dissera a tantas pessoas, e esquecera de fazer! tudo estava calmo e decidido. E eu estava sentindo um estranho alívio depois de tanta luta para manter algo em equilíbrio, eu tinha desistido, relaxado a tensão, deixado cair. Uma moleza estranha tomava o corpo todo. O próximo passo seria dali a alguns dias, finalmente descansar, recobrar forças.
Como por milagre, ou por Deus, após o telefonema meu companheiro acordou de sua aparente apatia e tudo mudou, novamente, inesperadamente.
Quando, após alguns minutos meu outro filho chegou para juntos conversarmos, nós dois, os companheiros de trinta e sete anos de vida, já havíamos decidido tudo e no dia seguinte, fomos em direção da nova cidade. Contudo a casa, ainda será um ninho...para nós dois. Mais uma tentativa... e vai ser suficientemente grande para levar muitas coisas... mas não é isto que importa, pra mim, é claro, nunca foi, embora agora eu prefira viver com conforto e não acredite mais, apenas num amor em uma cabana.
Demorei alguns dias para me habituar com a idéia, como se algo nela não se encaixasse, com certeza, pelo efeito da tensão pela qual passei, anteriormente. O que sei é que não preciso mais me responsabilizar sozinha pelo resultado desta tentativa! Será algo compartilhado, ou não resistirá, nem valerá a pena. E, acima de tudo, volto a lutar por aquilo que acredito - viver a verdade da minha capacidade de amar.
Contudo, a mudança maior está por minha conta, pois tenho consciência, ela não me deixa esquecer, que a Fenix é minha, sou eu que tenho que mudar, pois fui eu que a esculpi anos atrás, sou eu que a carrego em meus braços...
Não, acho que estou enganada... ele também terá de mudar ou tudo terá sido em vão novamente...Cada um de nós, tem sua própria Fenix a esculpir, não é mesmo ? Num relacionamento a dois, não pode existir a ilusão da individualidade totalmente preservada de um a prejuizo de outro. Ceder por amor em benefício de algo de mais valor é a mudança mútua que se espera, como qualquer acordo de sucesso em qualquer sociedade que se queira fazer respeitar e prosperar.
autora: Vera Alvarenga
imagem: fotos de minha escultura Phenix - premiada
Vera,estando fora durante os próximos dias venho a desejar-te um feliz dia mundial da mulher.Acompanhando suas histórias e reflexões com muito entusiasmo...Abraços,Bergilde
ResponderExcluirDeve haver alguma coisa errada com uma lagartixa doméstica acinzentada que só anda nos tetos do seu mundo, no exato instante limítrofe de permanecer agarrada a sua minúscula perspectiva ou se deixar cair no inebriante espaço desconhecido, nas asas da imaginação, no vôo resplandecente
ResponderExcluirAssim ela vai imaginando sua transformação. Espia o cume das montanhas pela fresta na parede. Entende que vive numa espécie de clandestinidade genética. Que a qualquer momento sua verdadeira identidade se revelara ao seu mundo rastejante, telúrico, noturno. Alcançara vôo renascendo em uma linhagem evolutiva que lhe percorre o DNA da alma, na transcendência espiritual. Refeita do carma dos impostores.
Nem lhe passa a idéia que poderia ter alter egos mais similares a sua existência corporal. Poderia se imaginar um jacaré, uma iguana, um calango, uma salamandra, quiçá um camaleão, que lhe dariam suporte para uma transfiguração. Sua concepção de organismo vivo é dual. Sua alma escala a passos largos degraus para o abandono de tudo o que é palpável. Regenerada das sombras, dos sonhos e das desilusões mundanas.
Acalenta uma simbólica combustão para que em uma fagulha colorida seu coração volte a pulsar. Seduzida pela fantasia insana de reviver desejos saciados. Tocada pela ilusão frenética de eternos retornos.
Deve haver alguma coisa de errado com uma mulher que resolve transformar a tatuagem de lagartixa em uma Fênix. Transformar um ser rasteiro, terráqueo e efêmero em uma criatura alada, arquetípica, metafísica, mítica e imortal.
À Fênix é permitido sonhar.
Jane Cassol
Mal acredito que vc fez isso! voce é uma artista, por tudo que tem feito, voce é!
ResponderExcluirbeijos