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terça-feira, 12 de julho de 2016

Olhos de Mar (um conto antigo)

Arrumava pastas, revia escritos antigos e resolveu relembrar um deles....
Olhos de Mar...
   Não estava preparada para este sentimento.Levantou-se,pegou a cadeira e saiu em direção à praia.Era perto.Olhou para um lado e outro.Meio da semana,ninguém a não ser aquele que de tão longe, não tinha sexo nem idade,apenas um ser distante qualquer.
   Respirou,deixou sair o ar que ficara preso no peito feito  um susto desde há pouco, quando aquele sentimento, de supetão,invadiu a alma. Como foi que, descuidada,permitiu que se instalasse assim feito dono,feito parte,feito álcool da bebida que se toma aos golinhos e, quando menos se espera,espalha-se,atordoa e por fim toma conta?
   Agora, lá estava ela, a olhar aquele imenso mar azul, tão imenso como a saudade que sentia dele. Ele,que tendo rosto não tinha voz,não tinha cheiro,nem pele para ser tocada,era apenas palavras.Ele que um dia lhe confessara que a seguia. Ah!A internet era um mundo novo que comunicava palavras que a emocionavam,com uma rapidez maior do que a que ela precisava para compreender a relatividade dos conceitos. Alguém a seguia atentamente em seu blog. E blog era um novo conceito para a garrafa com as mensagens que ela jogava ao mar, da ilha deserta em que estava. Surpreendente!
   Sentou-se.Fechou os olhos.Lembrou do espanto e da delicia de saber-se notada.Alguém lhe prestava atenção,quando menos esperava.De inicio,um pé atrás, ela recuava.Depois, como uma dança, o incentivo para continuar a escrever, um passo à frente e um pouco de vida pessoal compartilhada.Ele contou-lhe da morte prematura de um dos filhos. Ela,aflita,só podia imaginar quão grande seria esta dor.Queria abraçá-lo, apenas por solidariedade.
   Uma vez,o instinto e compaixão também a aproximaram do homem por quem se apaixonou, e que tornou-se seu marido. Entretanto anos após o casamento,parecia haver ali um poço sem fundo- ele permanecia crítico e exigente, como se disto precisasse para garantir a presença dela ao seu lado,com seu desejo irreal de compensá-lo.Ela pensara que poderia transbordar amor indefinidamente,já que não passara grandes carências na infância,como ele.E se a ela, aparentemente nada faltara e a vida tinha sido mãe benevolente,haveria certamente de ter, em si,uma generosidade inesgotável.Talvez o marido pensasse o mesmo,que a luz daquela alma crente e ingênua e talvez pretensiosa jamais se apagaria e a água daquela fonte generosa,jamais se esgotaria.Contudo,encontrava-se esgotada. Por anos tivera a sensação de que sua espontaneidade e o desejo de viver não eram adequados à mulher de um homem que fazia questão de mostrar-se herói em luta constante,mas deixava claro que a ela cabia compensá-lo por isto.Tão antiquada lhe parecia,agora,esta forma de viver a vida, mas foi assim que a viveu, por tanto tempo que pensou ser nobre a missão.Até que se viu perdida de si mesma,sem sua luz,no escuro e com sede.
   Desta vez, não foi a compaixão pelo homem que sofria, o que a aproximou dele, pois ela já sabia que não tinha a cura para as dores do mundo,mas a compaixão por ambos.E também a ternura por este outro que, mesmo ao ser tocado por grande sofrimento,sabia ser doce com ela e parecia querer vê-la confiante.Com isto,não estava habituada.
   E foi devido ao que sentira por ele que,naquele final de tarde,fugira do computador.Há dias não recebia notícia.Sem despedir-se, ele desaparecera.E ela sentiu uma saudade tão forte e inesperada que doía.Parecia não caber no peito, de tão grande que era.Não esperava por isto. Foi um susto,como ser golpeada de frente por gigantesca onda!
   As pessoas não avaliam o que realmente sentimos por elas,pensou.A amizade,surgida do quase nada,tornara-se rara como uma gaivota de asas douradas que viesse pousar na janela de um apartamento em meio a centenas de edifícios,numa cidade do interior.Simplesmente encontraram-se quando perdiam algo de si.Ele vinha como um raio de sol, forte mas que podia entrar na pele sem queimar.O masculino que lhe faltava em sua própria integridade.
   Cecília sabia que amizades virtuais traziam problemas para relacionamentos reais.Muitas vezes, no entanto, gritara antes a debilidade do seu e de si mesma, sem ser ouvida. Não que o amor houvesse acabado.Porque mesmo a um amor triste e moribundo ela se agarrava ainda que não visse no olhar dele o mesmo cuidado e portanto, muito da ternura e confiança nela haviam pouco a pouco esvanecido.
   Quem sabe ela devesse aceitar esta visão realista das coisas, permitir que o amor envelhecesse assim, naturalmente debilitado como ficam os velhos. Contudo, seu amor era sensível e não conseguia passar pela vida com a consciência adormecida. O hábito do marido direcionar a ela sua impaciência diante da vida que teimava frustá-lo, esfolava-lhe a pele. Em nome da paz e de um instinto meio insano de colocar-se no lugar do outro, quis crer que poderia perdoar a falta de gentileza, o comportamento agressivo, as traições, sem que a própria vida lhe cobrasse por isto. Mas tudo tem um preço. Ela precisava tornar-se insensível algumas vezes, engrossar a pele, para conseguir recomeçar a cada dia como se fosse um personagem de uma página pura, em branco. Ela tentou. E tentou, e assim, ambos pensaram que tudo estava controlado e bem. Finalmente, ela que pensara que o amor faria florescer sempre apenas o melhor no ser humano, decepcionou-se consigo mesma. Não tinha a nobreza de perdoar de novo, e de novo.Não era como a lua que existe e não questiona seus ciclos. Seu coração rebelde que se adaptava mas não se acomodava, quebrou-se em tantos pedaços que demorava recuperar a confiança nas pessoas ou no que quer que fosse. Sem lugar para repousar, como ave ferida que cai ao mar, debatia-se, antes de submergir.
   Foi neste momento, sem se dar conta, que o amigo que a incentivava a continuar a escrever enquanto o homem amado caçoava dos sonhos dela, o amigo que a chamava "minha querida" tornou-se, de repente,imprescindível. E ela sentiu, novamente, que era especial. O despertar de um estado de torpor, sentir-se viva pelo modo como era tratada,deixava mais claro o quanto se tornava insuportável o que há muito tempo já não era igual. Uma vez tinha lido que, diante do amor, tudo o que não o fosse pareceria grosseiro. O companheiro de tantos anos, o único homem que ela sabia amar era um bom homem, um lutador mas vivia isolado em seu próprio quarto de espelhos.
   Foi assim que um dia, Cecília surpreendeu-se feliz ao ler o recado daquele que lhe fazia sorrir quando chegava. Ingenuamente pensou que Deus ouvira suas preces e lhe trazia a esperança de ser amada, de sentir num olhar que a enxergava, que podia voltar a ser ela e habitar concretamente aquele corpo que era seu, mas por vezes parecia menos habitado por sua própria sensibilidade. Deus lhe trazia de volta o amor que ela pedira mas esquecera de nomear. E vinha pois, de um estranho!
   Distraída nestes pensamentos, assustou-se com leve movimento perto de si. Viu um cão vadio que, carente, procurava um dono. Desviou o olhar. O cão seguiu seu caminho.
   Voltou às lembranças de como, por empatia, se aproximaram. Ele, cuja tristeza se devia a perda de um filho. Ela, à perda de si mesma e da confiança que lhe dava sentido à vida. Ambos de luto.
   Um dia ele lhe agradeceu por existir. Como era possível alguém agradecer-lhe por simplesmente existir? Por ter sido inspiração para mudanças, incentivá-lo a assumir emoções, voltar a ser feliz. Em suas buscas para compreender as recentes emoções ela se desnudara. Sinceramente lhe dissera para amar as pessoas ao seu redor e ser feliz com elas antes que não houvesse mais tempo! Ele disse estar ferido. " Confie em suas asas e voe, meu amigo!", foi o que sugeriu. E ele voou.
   Ela não suspeitava que sentiria tanto sua falta! Naquela tarde, desejava voar com ele. Embora as rugas começassem a marcar seu rosto, era crédula. Apaixonou-se. E foi assim que, feito lua cheia,preencheu-se de uma luz que não era própria mas reflexo do próprio desejo de amar.
   E agora, tinha os olhos cheios de mar, e chorava.
   Que tolice! Como, nesta idade, podia apaixonar-se por quem não tinha um abraço real ? Aquele homem se tornara imprescindível para ela,embora tivesse sido ele a lhe afirmar certa manhã: -" Hoje consigo assegurar, com toda clareza e sensatez, que você é insubstituível para mim". Ela guardara aquele email como tesouro. Naquele dia, junto com ela, o mundo ficou sereno e em paz. E ela ousou sonhar! E desta vez não era um sonho de paz, de quem está cansada de manter o equilíbrio a despeito de um piso escorregadio. Depois do que ele lhe dissera, impossível não alimentar expectativas. E,discreta como era, esperou. Ele não suspeitaria que palavras marcam como tatuagem e pessoas sentem saudades? Ou palavras não teriam mais o mesmo sentido, naquele mundo virtual?
   Sentiu pena ao constatar que a saudade que sentia não era do marido. Era de amar. Sim, ela deixou-se levar pelo sonho, mas precisava perdoar-se. Sabia que teria evitado se pudesse e não tinha premeditado o sentimento. No inicio quis arrancar o sentimento como se fora erva daninha, negou-o, tinha compromisso com a felicidade e sabia sua responsabilidade nisto. Finalmente, porém, perdoou-se porque pensou que, se havia traição, era a de quem traíra sua confiança de diferentes maneiras, antes. ao deitar-se, com carinho e oculta tristeza, beijava o homem que amou por uma vida inteira. E quando faziam amor, ela se aconchegava em seus braços, desejando que a vida lhe trouxesse de volta a alegria de antes.
   Então, como poderia trair, mesmo em pensamento? Se ela então, não era perfeita, ninguém tinha de ser, nem seu companheiro. Era grande a tristeza que sentia quando mergulhava dentro de si e conhecia tais contradições.
   Caminhou em direção ao mar azul... a lua nascendo no horizonte, os olhos cheios d´água, descendo pelo rosto, o gosto salgando a boca...sentia-se parte do oceano.
   Não sabia se o mar estava em seu olhar ou se era ela que estava nele. Enquanto isto, a lua, cheia e linda, brilhava, indiferente e cheia de si.
   Um homem aproximou-se. Era aquele que antes era um ponto distante ao longe. Agora, passava por ela arrastando os pés descalços, num andar triste e solitário. Por quantas perdas e desamores haviam passado alguns homens, que não mais reconheciam nem viam o brilho daquela lua? Por  quem ela brilharia, então?
   O cachorro vadio da praia, aquele sem dono, aproximou-se dele. O homem parou. Olhou para o animal que sentou-se a sua frente e sustentava o olhar corajoso de quem busca resposta ao seu desejo de amar. Não estava mendigando amor, não, não era isto que queria. Ela compreendia o cão, como se estivesse nas entranhas dele. O homem ponderou. Não seria fácil tomar uma decisão daquelas, sair de sua conhecida e confortável solidão, comprometer-se em não abandonar quem iria lhe ser fiel, compartilhar de si com aquele que o olhava com esperança. Por fim, decidiu-se. Sorriu para o cão, passou-lhe a mão na cabeça, não com piedade mas como quem o aceita e, sem dizer palavra, continuou a caminhar, com uma alegria que antes lhe faltava. O acordo estava estabelecido. Homem e cão seguiram, lado a lado, confiantes, felizes em direção até o final da praia ou de suas vidas.
   No horizonte o mar estava sereno. A lua cheia, no seu esplendor, levantava-se do leito do amante, plena de si mesma.
   Cecília enxugou as lágrimas. Agora sabia. Fazia parte de tudo e de um desejo maior que em todos está... neste momento parecia tudo compreender, porque tudo era uma coisa só... seu desejo estava naquele homem e em seu cão... e no mar... e na feminilidade que se perpetuaria, para sempre, na lua!

conto de Vera Alvarenga
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