O inverno havia chegado.
Ela não gostava do frio. Pressentiu que o dia estava claro lá fora e que logo seria hora de levantar-se, mas sentiu-se quentinha ali, no meio das cobertas. E ficou quieta como em meditação ou adorada preguiça. Estar aposentada tinha suas vantagens, podia levantar-se mais tarde. Bem mais tarde. Não havia horário rígido para nada.
No inicio da noite não conseguira dormir tão rapidamente como gostaria. Seu pensamento estava em outro lugar e a tinha levado, em sonho, para longe dali. O frio, então, parecera maior pela madrugada. Pegou a mão do marido e suavemente colocou-a sobre o peito. Eles ainda tinham este hábito de abraçarem-se, de vez em quando, mesmo durante a noite. Bastava um pegar o braço do outro e virar-se. Aconchegavam-se por momentos, sem nem precisarem acordar.
Era um hábito. Como um agrado caso a vida tivesse sido difícil no dia anterior ou uma concessão, se algo entre eles tivesse deixado um gosto amargo na boca. Não importando como tinha sido o dia anterior, ela sempre acreditara que juntarem os pés sob as cobertas ou aconchegarem-se mesmo sem nada dizer, era como perdoarem-se por não serem perfeitos, e por serem tão diferentes. Era um jeito de criar um futuro melhor - para ela, cada dia deveria começar zerado, como uma folha de papel em branco onde o sol refletiria assim que ela abrisse a janela, e o abraçasse e se cumprimentassem com um bom dia.
E aquele abraço durante a noite era algo bom, era como o escultor que volta àquela mesma escultura que ainda não conseguiu terminar pela manhã e a descobre, e continua seu trabalho com as mesmas mãos, mas toca a argila como se fosse a primeira vez.
Ela podia fazer esta analogia porque era escultora. E além disto, trabalhara muitos anos com o toque - tocar o outro de algumas formas podia dar sentido, esperança, alento, vida, energia ou todo o seu contrário.
Este abraço funcionara por anos, como um acordo mútuo, como se um cuidasse de dizer ao outro:
- Estou aqui. Dorme. Fica bem.
Sim, havia muitas vantagens em se ter um relacionamento assim tão longo, coisas boas podiam acontecer como que por encanto...ou, na verdade, automaticamente por hábito. Por um hábito cuidadosa e intencionalmente mantido. Quem disse que disciplina e bons hábitos não fazem bem?
Virou-se, e como era costume antigo nas manhãs de domingo, mas já andava a esquecer de colocar em prática ultimamente, colocou a mão no peito dele e ele imediatamente abriu o braço para que ela deitasse em seu ombro. E ficaram assim, quietos, por mais algum tempo antes de começar um novo dia.
Aquele homem era o seu passado e seu presente. O relacionamento, uma escultura. O toque era um ato de fé. A fé e o amor são coisas que devem ser exercitados com disciplina, como pudermos, com quem pudermos, quantas vezes nos for possível, ou ficaremos como aquela argila ressecada, aquela escultura com rachaduras porque o escultor esqueceu de cobri-la de noite, e descobri-la no dia seguinte, e olhá-la com fé e tocá-la mais uma vez, quase como pela primeira vez.
As vezes somos como o escultor, outras como escultura. E algumas vezes, alguns de nós tem a sorte de experimentar os dois papéis.
foto e texto: vera alvarenga
Ela não gostava do frio. Pressentiu que o dia estava claro lá fora e que logo seria hora de levantar-se, mas sentiu-se quentinha ali, no meio das cobertas. E ficou quieta como em meditação ou adorada preguiça. Estar aposentada tinha suas vantagens, podia levantar-se mais tarde. Bem mais tarde. Não havia horário rígido para nada.
No inicio da noite não conseguira dormir tão rapidamente como gostaria. Seu pensamento estava em outro lugar e a tinha levado, em sonho, para longe dali. O frio, então, parecera maior pela madrugada. Pegou a mão do marido e suavemente colocou-a sobre o peito. Eles ainda tinham este hábito de abraçarem-se, de vez em quando, mesmo durante a noite. Bastava um pegar o braço do outro e virar-se. Aconchegavam-se por momentos, sem nem precisarem acordar.
Era um hábito. Como um agrado caso a vida tivesse sido difícil no dia anterior ou uma concessão, se algo entre eles tivesse deixado um gosto amargo na boca. Não importando como tinha sido o dia anterior, ela sempre acreditara que juntarem os pés sob as cobertas ou aconchegarem-se mesmo sem nada dizer, era como perdoarem-se por não serem perfeitos, e por serem tão diferentes. Era um jeito de criar um futuro melhor - para ela, cada dia deveria começar zerado, como uma folha de papel em branco onde o sol refletiria assim que ela abrisse a janela, e o abraçasse e se cumprimentassem com um bom dia.
E aquele abraço durante a noite era algo bom, era como o escultor que volta àquela mesma escultura que ainda não conseguiu terminar pela manhã e a descobre, e continua seu trabalho com as mesmas mãos, mas toca a argila como se fosse a primeira vez.
Ela podia fazer esta analogia porque era escultora. E além disto, trabalhara muitos anos com o toque - tocar o outro de algumas formas podia dar sentido, esperança, alento, vida, energia ou todo o seu contrário.
Este abraço funcionara por anos, como um acordo mútuo, como se um cuidasse de dizer ao outro:
- Estou aqui. Dorme. Fica bem.
Sim, havia muitas vantagens em se ter um relacionamento assim tão longo, coisas boas podiam acontecer como que por encanto...ou, na verdade, automaticamente por hábito. Por um hábito cuidadosa e intencionalmente mantido. Quem disse que disciplina e bons hábitos não fazem bem?
Virou-se, e como era costume antigo nas manhãs de domingo, mas já andava a esquecer de colocar em prática ultimamente, colocou a mão no peito dele e ele imediatamente abriu o braço para que ela deitasse em seu ombro. E ficaram assim, quietos, por mais algum tempo antes de começar um novo dia.
Aquele homem era o seu passado e seu presente. O relacionamento, uma escultura. O toque era um ato de fé. A fé e o amor são coisas que devem ser exercitados com disciplina, como pudermos, com quem pudermos, quantas vezes nos for possível, ou ficaremos como aquela argila ressecada, aquela escultura com rachaduras porque o escultor esqueceu de cobri-la de noite, e descobri-la no dia seguinte, e olhá-la com fé e tocá-la mais uma vez, quase como pela primeira vez.
As vezes somos como o escultor, outras como escultura. E algumas vezes, alguns de nós tem a sorte de experimentar os dois papéis.
foto e texto: vera alvarenga